terça-feira, 11 de maio de 2010

Pequenas grandes mudanças II

Atenção: este texto é independente da parte I, mas esta pode conter informações interessantes para quem não é da área, e auxiliar no entendimento, aqui. Se desejar, acesse aqui o primeiro texto. Da mesma forma, os links espalhados pelo texto remetem a páginas, deste ou de outros sites, contendo informações a respeito dos termos marcados, para caso haja dúvida a respeito deles.

Neste último mês de abril, a revista Journal of Experimental Botany (Revista de Botânica Experimental), uma das revistas mantidas pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, lançou uma edição especial, falando de forma temática sobre o pólen, seu desenvolvimento e controle da polinização (ver figura 1, grãos de pólen de Arabidopsis thaliana). Um dos trabalhos apresentados nesta edição é de um grupo de cientistas estadunidenses e portugueses que conseguiu, de forma inédita, fotografar o crescimento do tubo polínico in vivo, ou seja, dentro da própria planta, viva. Até então, todas as observações deste tipo tinham sido feitas in vitro, ou seja, utilizando-se apenas pedaços do tecido da planta e o grão de pólen para simular uma situação real. A dificuldade de se observar isso diretamente na planta é devida, principalmente, à grande quantidade de camadas de tecidos totalmente opacos do pistilo – órgão feminino da flor, pelo qual o tubo polínico precisa passar para chegar até o óvulo.

Os cientistas que conseguiram fazer isso utilizaram uma técnica chamada microscopia de excitação por dois fótons (2-photon excitation microscopy), a qual consiste basicamente num equipamento que dispara fótons (laser) de baixa energia em direção do que se deseja ver, fazendo com que uma substância fluorescente no objeto emita radiação luminosa, a qual pode ser fotografada. Para isso, é claro, tiveram de colocar uma substância fluorescente no pólen, para que ele pudesse ser visto enquanto desenvolvesse seu tubo. Isto não foi feito diretamente; os grãos de pólen usados foram retirados de plantas transgênicas, que tiveram seus genes responsáveis pelo desenvolvimento do pólen ligados a uma substância chamada GFP (sigla em inglês para “proteína verde fluorescente”) – deste modo, os grãos de pólen, que contêm estes genes ativos, “acendem” quando expostos ao laser, assim como o tubo polínico formado por eles. Uma das imagens obtidas pode ser conferida na figura 2. Na figura 3, uma eletro-micrografia de varredura do estigma da mesma espécie (livre de pólen), para efeito de comparação.

A planta utilizada foi a Arabidopsis thaliana, uma espécie da mesma família da mostarda e que é muito utilizada para experiências em laboratório, especialmente em estudos genéticos e moleculares, devido ao seu rápido desenvolvimento e genoma relativamente pequeno (foi o primeiro genoma vegetal totalmente sequenciado, com cerca de 26.000 genes). O pólen fluorescente foi retirado da Arabidopsis transgênica e colocado no estigma de uma outra Arabidopsis para ter seu crescimento observado, como esquematizado na figura ao lado. Esta observação permitiu que os cientistas, liderados por Alice Y. Cheung, do departamento de Bioquímica e Biologia Molecular da Universidade de Massachusetts (Estados Unidos), confirmassem visualmente a ação de uma série de controles químicos dentro do pistilo, tais como a nutrição do tubo polínico durante o percurso e orientação e velocidade do seu crescimento.

Legal. Mas se você está chegando agora ao mundo da Botânica, ou mesmo da Biologia, pode estar se perguntando o que diabos é tudo isso. Vamos tentar esclarecer, na seção abaixo.


QUEM É O PÓLEN

A evolução dos organismos não segue nenhuma direção pré-definida, mas às vezes uma nova estratégia apresenta tantas vantagens que ela se mantém, indefinidamente. Quando estudamos a evolução das plantas, observando suas estruturas homólogas, vemos que uma dessas grandes estratégias foi o aumento do tamanho do esporófito, acompanhado do aparecimento de funções cada vez mais diversificadas neste estágio reprodutivo. As mais primitivas dentre as espécies de plantas sobreviventes atuais são as Briófitas (ex.: musgos), e nelas o esporófito depende do gametófito para tudo, desde a absorção de nutrientes do solo à transformação da luz do sol em energia química. Nas Pteridófitas (ex.: samambaia), mais recentes e possuidoras de vasos condutores de seiva, o esporófito já é totalmente independente depois de formado, pois possui raízes e folhas para se alimentar e conseguir energia. Este desenvolvimento em tamanho e função dos esporófitos continuou evolutivamente nos outros dois grandes grupos de plantas mais diferenciadas, Gimnospermas e Angiospermas (este último ao qual pertence a Arabidopsis), cujos esporófitos podem chegar a dezenas de metros de altura, como os da figura 4, foto de sequoias.

No entanto, observando-se estes esporófitos tão independentes, grandes e bonitos das Gimnospermas e Angiospermas, fica uma dúvida: PARA ONDE FOI O GAMETÓFITO? Uma regra bem definida dentro do Reino Vegetal (Embriófitas) é que todas as plantas se reproduzem por meio de uma alternância de gerações, ou seja: um organismo (esporófito) produz esporos, e estes esporos se desenvolvem se tornando outro organismo (gametófito), que é capaz de produzir gametas; dois gametas então se unem para se desenvolverem em outro organismo, um novo esporófito, reiniciando o ciclo. O gametófito está bem visível tanto nas Briófitas quanto nas Pteridófitas, apesar de ser permanente nas primeiras e apenas temporário nas segundas. Mesmo sem ser evidente, portanto, o gametófito tem que existir também em Gimnospermas e Angiospermas, em algum lugar. Mas onde? Notamos que há um aumento do esporófito e uma diminuição do gametófito quando comparamos Briófitas e Pteridófitas; como certamente em Gimnospermas o esporófito aumentou ainda mais, podemos levantar a hipótese de que o gametófito diminuiu ainda mais. Vamos tentar confirmar isto, então.

Ainda há muita discussão sobre a origem exata destes grandes grupos de plantas atuais, e muitos detalhes permanecem desconhecidos. Mas algumas coisas se sabem com razoável certeza, graças aos achados fósseis e às análises moleculares (comparações de DNA, RNA e proteínas entre as plantas). As Gimnospermas surgiram a partir de algum parente próximo das Pteridófitas atuais e, mais tarde, as Angiospermas se modificaram de um grupo de Gimnospermas antigo. Estes dois grupos têm mais em comum do que apenas um esporófito muito desenvolvido – a parte “sperma” dos dois nomes significa “semente”, ou seja, uma das características que diferenciaram as primeiras Gimnospermas (e que se mantiveram nas Angiospermas) foi a semente, responsável por germinar e originar um novo esporófito. Ora, um esporófito não pode gerar um outro esporófito diretamente sem haver uma geração gametofítica intermediária – e a semente surge dentro do esporófito –, então o gametófito tem que estar também dentro do esporófito.

E, realmente, é isso o que acontece. Até antes das Gimnospermas aparecerem, os gametófitos de todas as plantas surgiam a partir de um esporo que abandonava o esporófito e ia germinar fora dele para originar o gametófito, assim como ainda acontece com as Briófitas e Pteridófitas atuais. A grande inovação das Gimnospermas – a semente – explica-se porque, por algum motivo, os esporos delas passaram a se desenvolver dentro do próprio esporófito, no esporângio que as originou. Naturalmente, o gametófito nascerá e crescerá dentro do esporófito. Como elas são plantas heterospóricas, haverá gametófitos masculinos e femininos, os quais produzirão gametas. Ao se encontrarem, os dois gametas se unirão e darão origem a uma semente. Mas, diferentemente do que acontece com as suas primas mais velhas, as Gimnospermas e Angiospermas não têm disponível um meio aquoso que sirva de caminho para que os anterozoides produzidos pelo gametófito masculino se desloquem até o gametófito feminino a fim de se unirem às oosferas. A estratégia que elas desenvolveram, então, foi fazer com que o gametófito masculino inteiro se deslocasse até o feminino (isto mesmo, mesmo sem ter pernas!) e entregasse os anterozoides diretamente, para fecundarem as oosferas.

O gametófito masculino é o famoso grão de pólen. Vários grãos de pólen juntos formam aquele “pozinho” amarelinho que sai dos estróbilos (ex.: pinhas dos pinheiros) masculinos das Gimnospermas e que também está presente nas flores das Angiospermas. O gametófito feminino fica mais escondido, dentro dos estróbilos femininos ou dos ovários das flores, guardando as oosferas. Para chegar ao gametófito feminino, o pólen das Gimnospermas conta com a força do vento para levá-lo e, se tiver sorte, cair dentro de um estróbilo feminino. Ele se fixa próximo à micrópila, onde termina seu desenvolvimento e libera os anterozoides para que nadem até as oosferas. Este vídeo é uma animação (narrada em inglês) que mostra rapidamente como ocorre a reprodução das gimnospermas. Aqui, um outro vídeo, dublado em português.

Nas Angiospermas ocorre mais ou menos a mesma coisa, mas com algumas diferenças importantes. Pra começar, elas não precisam contar com o vento para levar o pólen até o gametófito feminino. Elas desenvolveram uma estrutura muito conhecida nossa, a flor, que fornece alimento, cores e perfumes para que insetos e pássaros venham até ela e façam este serviço inconsciente, carregando pólen de flor em flor. Por isso, aliás, existem tantas Angiospermas diferentes, com tantas flores diferentes. Cada uma evoluiu suas características para atrair melhor algum animal que a ajudasse a se reproduzir. Esta estratégia, no entanto, tornou um pouco mais difícil o encontro dos dois gametófitos. Na figura 5 vemos um esquema generalizado de Angiospermas.

Agora os gametófitos femininos ficam protegidos dentro de uma estrutura a qual chamamos ovário. O pólen deixado lá em cima precisa então desenvolver muito o seu tubo polínico para que este chegue até lá embaixo, onde os óvulos estão, e libere os anterozoides. E é aí que acontece o que foi observado no trabalho citado no início do texto, da equipe de Cheung. A figura 6 é uma imagem que eles conseguiram com seu trabalho. Note como, quando comparado ao esquema da figura 5, o ovário da Arabidopsis é bem maior, indo até próximo do estigma.

Seja nas Gimnospermas ou Angiospermas, ao encontrar a oosfera, o anterozoide a fecunda e esta união dá origem ao esporófito. Ele, no entanto, não se desenvolverá completamente, por enquanto. Com a fecundação, uma série de transformações químicas acontecem, fazendo com que toda a estrutura do óvulo se transforme no que chamamos de semente. Nas Angiospermas, todo o ovário se transforma no fruto. Quando a semente estiver madura, ela poderá continuar seu desenvolvimento e germinar, se as condições permitirem. Mas o mais importante é que, até lá, o esporófito estará extremamente protegido dentro da semente, aumentando sua probabilidade de sobrevivência; o que já não acontece com as Briófitas e Pteridófitas, cujos gametófitos germinam diretamente dos esporos que caem no chão, sem a existência de uma semente para protegê-los durante o início do desenvolvimento.

Vemos, então, que não apenas o aumento de tamanho do esporófito durante a evolução das plantas trouxe vantagens a elas. A diminuição dos gametófitos também foi imprescindível. Se o gametófito masculino não tivesse diminuído tanto, como ele poderia ser carregado pelo vento nas Gimnospermas ou levado grudado no corpo de pequenos insetos, nas Angiospermas? Graças ao gametófito feminino se desenvolver dentro do corpo da mãe é que foi possível que ele e toda a estrutura que o envolve se transformasse em semente, depois de fertilizado pelos gametas do grão de pólen. Claro que toda essa parafernália exigiu que aparecessem, juntos, mecanismos para permitir que o grão de pólen consiga levar os anterozoides até o óvulo. Nas Angiospermas, especialmente, os diversos artifícios utilizados pelas flores para atrair polinizadores tiveram de evoluir – o que, no final das contas, certamente compensou o “esforço”, pois elas são, de longe, as plantas mais numerosas e diversificadas do planeta.


Referências:

Biologia Vegetal, de Peter H. Raven, Ray F. Evert e Susan E. Eichhorn. Guanabara Koogan, 6ª edição, 2001.

The pollen tube journey in the pistil and imaging the in vivo process by two-photon microscopy, de Alice Y. Cheung, Leonor C. Boavida, Mini Aggarwal, Hen-Ming Wu e José A. Feijó. Journal of Experimental Botany, Vol. 61, No. 7, Abril de 2010.


Figuras:

1 e 3: retiradas de ec.europa.eu. Há outras imagens muito interessantes de Arabidopsis, lá.

2, 5 e 6: retiradas de The pollen tube journey in the pistil and imaging the in vivo process by two-photon microscopy, de Alice Y. Cheung, Leonor C. Boavida, Mini Aggarwal, Hen-Ming Wu e José A. Feijó. Journal of Experimental Botany, Vol. 61, No. 7, Abril de 2010.

4: retirada de www.videoscienza.it.

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