A diversidade de seres vivos presentes na natureza, com suas mais variadas formas, cores e comportamentos, sempre intrigou as pessoas que a observam, provavelmente desde a primeira vez em que algum primata olhou para ela de forma crítica, há alguns milhões de anos atrás, e começou a procurar por significados, padrões que fizessem sentido a ele. De lá pra cá, estes primatas não apenas se modificaram bastante, como a última "versão" deles (a qual chamamos Homo sapiens) também conseguiu registrar muitos avanços nessa investigação da natureza.
Há pouquinho tempo, aliás, apenas um século e meio atrás, dois deles - Darwin e Wallace, depois de uma vida inteira de trabalho - propuseram como a natureza faz para selecionar diferentes características nos seres vivos, por meio da competição e da cooperação entre eles, de forma a, com o tempo, termos toda essa variedade que temos hoje. Foi aí que nasceu a Teoria da Evolução, aquela que hoje baseia todo o nosso conhecimento sobre a diversidade da vida. Mas, se existe uma seleção de características, os primatas humanos que vieram depois deles passaram a se ocupar em descobrir como essas características surgem para poderem ser depois selecionadas.
Vejamos a figura abaixo, que mostra os quatro tipos mais gerais de plantas que existem hoje e a história evolutiva delas:
Plantas inventoras
Há algumas centenas de milhões de anos o mais próximo que tínhamos de plantas na Terra era algum tipo de alga verde. Sabemos que não havia plantas pela ausência de fósseis desses períodos e sabemos da sua relação com as algas verdes porque após o trabalho acumulado de algumas gerações de cientistas, percebemos que todas as plantas atuais possuem muitas características semelhantes às algas verdes atuais. Isto significa que as plantas e as algas verdes descendem de um mesmo ancestral, semelhante às algas, o que equivale a dizer que, num certo momento no tempo, uma alga verde (ou algo muito parecido com uma) deu origem ao que se tornaria toda a população do reino Plantae que observamos hoje. Mas não apareceram todas de uma só vez.
A história evolutiva das plantas, assim como a de todos os outros seres vivos, é uma história de invenções. Invenções de que? Invenções de novas estruturas nos corpos dos seres, modificadas a partir de outras que já existiam. Vale apenas observar que, por serem invenções realizadas ao acaso, sem nenhum objetivo, a maior parte delas não dá certo, e seu "inventor" acaba morrendo sem poder passar a nova estrutura para os seus descendentes. Mas, de vez, em quando, uma invenção dessas dá certo e acaba modificando totalmente a história de uma espécie, e é dessas invenções que a gente fica sabendo. Isto resume, de forma bastante grosseira, a Teoria da Seleção Natural, proposta por Darwin e Wallace.
Voltando à figura: como sabemos, a maior parte das algas vive sob a água, e o mesmo acontecia com a alga ancestral das plantas. Até que um grupo de algas inventou uma estrutura que permitiu a quem a possuísse sair da água e colonizar a terra: um embrião multicelular que iniciava seu desenvolvimento protegido dentro de um arquegônio. Esse embrião é o início do desenvolvimento do que conhecemos como esporófito. Uma parte destas primeiras plantas continuaram se reproduzindo até os dias de hoje sem precisar de grandes novas invenções: são as briófitas, cujos representantes mais conhecidos nossos são os musgos.
Houve um outro grupo, no entanto, que continuou inventando: as traqueófitas (plantas vasculares). Elas desenvolveram tecidos especiais para conduzir a seiva, os vasos condutores, que permitiram, entre outras coisas, maior independência da água e um super-desenvolvimento do esporófito, que passou a ser a geração dominante. Daí pra frente, todos os grupos descendentes deste teriam o esporófito cada vez mais dominante, pois ele ofereceu duas enormes vantagens:
1) por ser bastante ramificado, ele poderia ter vários esporângios (em vez de um só, como acontece com as briófitas), o que aumenta o sucesso reprodutivo e
2) ele desenvolveu folhas.
É particularmente neste segundo item que quero me deter. Primeiramente, você pode estar se perguntando: mas as briófitas também não têm folhas? A resposta é sim e não. Elas têm estruturas às quais também chamamos folhas por serem verdes e desempenharem a mesma função básica das folhas das traqueófitas, a realização da fotossíntese. Mas são estruturas diferentes por vários motivos; dentre eles, o mais importante é que a "folha" das briófitas fica no gametófito, enquanto a folha "verdadeira", das traqueófitas, fica no esporófito. Ou seja: o esporófito das traqueófitas é uma modificação do esporófito das briófitas, mas as folhas das traqueófitas não são modificações das folhas das briófitas - elas são uma invenção totalmente nova.
Uma invenção nova e aparentemente muito melhor para desempenhar suas funções: por serem vascularizadas, as folhas puderam atingir tamanhos muito maiores - quanto maior o tamanho, maior a absorção de luz e, consequentemente, maior a quantidade de energia obtida. É por isso que a samambaia tem aquelas folhas enormes. E a importância das folhas foi muito além quando, milhões de anos mais tarde, algumas delas iriam se modificar para produzir o que conhecemos como flor, nas angiospermas. Isso mesmo! Cada parte de uma flor - pétala, sépala, estame (órgão maculino) e carpelo (órgão feminino) é uma folha modificada.
Olhando bem de perto para enxergar longe
Mas como, afinal, surgem essas "invenções"? Sabemos que quem possui todas as informações para se produzir e manter funcionando qualquer ser vivo no planeta Terra é o DNA - aquela molécula gigantesca, presente em pelo menos a maior parte das células de todos os seres vivos, e que usa sua sequência de nucleotídeos (adenina, guanina, citosina e timina) como molde para produzir as proteínas, responsáveis por todo o funcionamento celular. Se ocorre alguma modificação envolvendo o DNA, a quantidade ou mesmo a constituição das proteínas será alterada, provocando alguma alteração na célula. Se esta célula for uma célula que vai originar outro indivíduo - um gameta ou um esporo de uma planta, por exemplo - então todas as células do novo indivíduo terão aquela modificação, pois o DNA de todas elas será idêntico ao da célula que as originou. Se essa modificação não impedir o novo indivíduo de gerar outros, seus descendentes também terão essa modificação e a passarão adiante.
Um detalhe curioso é: se o DNA é idêntico em todas as células de uma planta, porque as células de uma mesma planta são diferentes entre si? Ou seja, o que faz uma célula da raiz ser diferente de uma célula do caule, do esporângio ou de uma folha, se o DNA dentro delas é o mesmo? A diferença básica está em quais partes do DNA (genes) estão ativas em cada uma das células. Com genes diferentes ativados e desativados, tipos e quantidades diferentes de proteínas serão produzidos, o que influenciará diretamente no funcionamento interno da célula e, consequentemente, na função dela para o organismo. O DNA de todas as células é completo, mas as células da raiz possuem seus "genes de raiz" funcionando, enquanto células da folha estão com seus "genes de folha" ativos.
Há biólogos que tentam descobrir como esse controle de genes funciona. Dois deles, Amada Pulido (do Instituto Jean Pierre Bourgin, na França) e Patrick Laufs (da Universidade de Granada, na Espanha) investigam como dois pedacinhos de RNA interferem na expressão dos genes nas células da planta que estão dando origem às folhas, e publicaram este mês um artigo com uma revisão do que se conhece sobre isso, até agora. Há basicamente três momentos da síntese de proteínas onde o funcionamento dos genes pode ser controlado: antes da transcrição, entre a transcrição e a tradução e depois da tradução.
(Relembrando, a transcrição é a produção de um RNA mensageiro (mRNA) a partir do DNA e a tradução é o que acontece depois, a produção da proteína a partir do mRNA. Para maiores detalhes assista aos vídeos ao final do texto, retirados do Youtube).
Existem vários pedaços de RNA com este tipo de função nas células, mas os pedaços de RNA que esses biólogos investigam são chamados de "microRNA" (miRNA) e atuam no RNA mensageiro (mRNA), ou seja, entre a transcrição e a tradução, impedindo que o mRNA seja traduzido em proteínas. Como eles fazem isso? Como são todos RNA, todos eles são formados por nucleotídeos, e, como sabemos, adenina liga-se a uracila (o equivalente a timina no RNA) e guanina liga-se a citosina. Pois os miRNA possuem sequências de nucleotídeos que se encaixam perfeitamente nas regiões do mRNA em que as proteínas envolvidas na tradução teriam que se ligar para iniciar a produção de uma nova proteína.
É claro que isso tem que ser controlado, ou esses mRNA nunca seriam traduzidos. Os próprios miRNA são produzidos a partir de genes específicos no DNA, e a transcrição deles é mediada por outros fatores, inclusive pela sua própria quantidade no citoplasma. É todo um conjunto intrincado de eventos que ora ativa alguns genes, ora os desativa, que vai regulando o comportamento das células. No caso do desenvolvimento das folhas, o trabalho de Pulido e Laufs mostra que esses dois pedaços de RNA regulam eventos desde a diferenciação das primeiras células do meristema (local de crescimento do caule, galhos e folhas da planta) até a senescência (velhice) da folha. O que isso tem a ver com as "invenções" das plantas, das quais vínhamos falando? O comportamento desses dois pedaços de RNA nos mostra como pequenas modificações no DNA podem produzir enormes diferenças nos órgãos das plantas - neste caso, na folha.
Por exemplo, sabemos que as folhas de uma planta chamada Arabidopsis (à esquerda) devem possuir tecido rico em clorofila na parte de cima (onde ela tomará sol e absorverá energia luminosa para fazer fotossíntese) e um tecido especializado em trocas gasosas na parte de baixo. Isso é o que é chamada de polaridade da folha. A polaridade da folha é definida logo no início do seu desenvolvimento, e o miRNA faz parte dos agentes reguladores dos fatores envolvidos. Uma única modificação de nucleotídeo no sítio de ligação do miRNA pode fazer com que a polaridade da folha seja invertida, ou seja, entre outras desvantagens, essa folha não será eficaz na fotossíntese, pois a maior parte de sua clorofila está escondida do sol, virada para baixo. Nesta mesma planta, Arabidopsis, o equilíbrio entre a quantidade de miRNA e a expressão de uma família de genes chamada CUC define se a folha será mais ou menos serrilhada. De modo interessante, quando os biólogos modificaram um dos genes CUC para que ele não fosse mais afetado pela presença do miRNA, as folhas que se desenvolveram ficaram totalmente deformadas.
Um outro grupo de plantas, a família Brassicaceae, nos dá o testemunho vivo da evolução ocorrendo. As plantas desta família são as únicas que possuem uma variação do miRNA, chamada de miR824, que por sua vez interfere no funcionamento de um único gene, o AGL16. O fato de só existir nesta família sugere que este miRNA surgiu dentro dela, a partir de uma duplicação do próprio gene AGL16. E esta parceria é imprescindível para o desenvolvimento das folhas nesta família: sem a ação do miR824 sobre o AGL16, as folhas desenvolvem deformações.
Enfim, os miRNA são apenas alguns de uma quantidade infinitamente maior de fatores moleculares envolvidos no desenvolvimento de folhas e de todas as demais partes das plantas. Como vimos, pequenas modificações neles podem resultar em grandes diferenças, que podem ser boas ou ruins. Certamente a maior parte desses "experimentos" da natureza deu errado no decorrer dos bilhões de anos de evolução da vida, deixando chegar até nós apenas o que funcionou, como a própria "invenção" das folhas, órgãos altamente especializados em fornecer energia à planta. Isso pode nos dar a falsa idéia de que a natureza já sabia desde o princípio onde queria chegar. Mas a verdade é que o que sobrou é apenas uma pequena parte de um todo muito maior; e um todo não apenas de fracassos, mas também de acertos que duraram bastante tempo e, pelas mais variadas circunstâncias, deixaram de existir muito antes que pudéssemos apreciá-los com nossos olhos. Resta aos estudiosos da vida, agora, imaginar o que pode ter acontecido e tentar, por meio das pistas que os seres vivos atuais e fósseis nos dão, comprovar ou refutar essas idéias.
Bibliografia
Biologia Vegetal, de Peter H. Raven, Ray F. Evert e Susan E. Eichhorn. Guanabara Koogan, 6ª edição, 2001.
Co-ordination of developmental processes by small RNAs during leaf development, de Amada Pulido e Patrick Laufs. Journal of Experimental Botany, Vol. 61, No. 5.
A história evolutiva das plantas, assim como a de todos os outros seres vivos, é uma história de invenções. Invenções de que? Invenções de novas estruturas nos corpos dos seres, modificadas a partir de outras que já existiam. Vale apenas observar que, por serem invenções realizadas ao acaso, sem nenhum objetivo, a maior parte delas não dá certo, e seu "inventor" acaba morrendo sem poder passar a nova estrutura para os seus descendentes. Mas, de vez, em quando, uma invenção dessas dá certo e acaba modificando totalmente a história de uma espécie, e é dessas invenções que a gente fica sabendo. Isto resume, de forma bastante grosseira, a Teoria da Seleção Natural, proposta por Darwin e Wallace.
Voltando à figura: como sabemos, a maior parte das algas vive sob a água, e o mesmo acontecia com a alga ancestral das plantas. Até que um grupo de algas inventou uma estrutura que permitiu a quem a possuísse sair da água e colonizar a terra: um embrião multicelular que iniciava seu desenvolvimento protegido dentro de um arquegônio. Esse embrião é o início do desenvolvimento do que conhecemos como esporófito. Uma parte destas primeiras plantas continuaram se reproduzindo até os dias de hoje sem precisar de grandes novas invenções: são as briófitas, cujos representantes mais conhecidos nossos são os musgos.
Houve um outro grupo, no entanto, que continuou inventando: as traqueófitas (plantas vasculares). Elas desenvolveram tecidos especiais para conduzir a seiva, os vasos condutores, que permitiram, entre outras coisas, maior independência da água e um super-desenvolvimento do esporófito, que passou a ser a geração dominante. Daí pra frente, todos os grupos descendentes deste teriam o esporófito cada vez mais dominante, pois ele ofereceu duas enormes vantagens:
1) por ser bastante ramificado, ele poderia ter vários esporângios (em vez de um só, como acontece com as briófitas), o que aumenta o sucesso reprodutivo e
2) ele desenvolveu folhas.
É particularmente neste segundo item que quero me deter. Primeiramente, você pode estar se perguntando: mas as briófitas também não têm folhas? A resposta é sim e não. Elas têm estruturas às quais também chamamos folhas por serem verdes e desempenharem a mesma função básica das folhas das traqueófitas, a realização da fotossíntese. Mas são estruturas diferentes por vários motivos; dentre eles, o mais importante é que a "folha" das briófitas fica no gametófito, enquanto a folha "verdadeira", das traqueófitas, fica no esporófito. Ou seja: o esporófito das traqueófitas é uma modificação do esporófito das briófitas, mas as folhas das traqueófitas não são modificações das folhas das briófitas - elas são uma invenção totalmente nova.
Uma invenção nova e aparentemente muito melhor para desempenhar suas funções: por serem vascularizadas, as folhas puderam atingir tamanhos muito maiores - quanto maior o tamanho, maior a absorção de luz e, consequentemente, maior a quantidade de energia obtida. É por isso que a samambaia tem aquelas folhas enormes. E a importância das folhas foi muito além quando, milhões de anos mais tarde, algumas delas iriam se modificar para produzir o que conhecemos como flor, nas angiospermas. Isso mesmo! Cada parte de uma flor - pétala, sépala, estame (órgão maculino) e carpelo (órgão feminino) é uma folha modificada.
Olhando bem de perto para enxergar longe
Mas como, afinal, surgem essas "invenções"? Sabemos que quem possui todas as informações para se produzir e manter funcionando qualquer ser vivo no planeta Terra é o DNA - aquela molécula gigantesca, presente em pelo menos a maior parte das células de todos os seres vivos, e que usa sua sequência de nucleotídeos (adenina, guanina, citosina e timina) como molde para produzir as proteínas, responsáveis por todo o funcionamento celular. Se ocorre alguma modificação envolvendo o DNA, a quantidade ou mesmo a constituição das proteínas será alterada, provocando alguma alteração na célula. Se esta célula for uma célula que vai originar outro indivíduo - um gameta ou um esporo de uma planta, por exemplo - então todas as células do novo indivíduo terão aquela modificação, pois o DNA de todas elas será idêntico ao da célula que as originou. Se essa modificação não impedir o novo indivíduo de gerar outros, seus descendentes também terão essa modificação e a passarão adiante.
Um detalhe curioso é: se o DNA é idêntico em todas as células de uma planta, porque as células de uma mesma planta são diferentes entre si? Ou seja, o que faz uma célula da raiz ser diferente de uma célula do caule, do esporângio ou de uma folha, se o DNA dentro delas é o mesmo? A diferença básica está em quais partes do DNA (genes) estão ativas em cada uma das células. Com genes diferentes ativados e desativados, tipos e quantidades diferentes de proteínas serão produzidos, o que influenciará diretamente no funcionamento interno da célula e, consequentemente, na função dela para o organismo. O DNA de todas as células é completo, mas as células da raiz possuem seus "genes de raiz" funcionando, enquanto células da folha estão com seus "genes de folha" ativos.
Há biólogos que tentam descobrir como esse controle de genes funciona. Dois deles, Amada Pulido (do Instituto Jean Pierre Bourgin, na França) e Patrick Laufs (da Universidade de Granada, na Espanha) investigam como dois pedacinhos de RNA interferem na expressão dos genes nas células da planta que estão dando origem às folhas, e publicaram este mês um artigo com uma revisão do que se conhece sobre isso, até agora. Há basicamente três momentos da síntese de proteínas onde o funcionamento dos genes pode ser controlado: antes da transcrição, entre a transcrição e a tradução e depois da tradução.
(Relembrando, a transcrição é a produção de um RNA mensageiro (mRNA) a partir do DNA e a tradução é o que acontece depois, a produção da proteína a partir do mRNA. Para maiores detalhes assista aos vídeos ao final do texto, retirados do Youtube).
Existem vários pedaços de RNA com este tipo de função nas células, mas os pedaços de RNA que esses biólogos investigam são chamados de "microRNA" (miRNA) e atuam no RNA mensageiro (mRNA), ou seja, entre a transcrição e a tradução, impedindo que o mRNA seja traduzido em proteínas. Como eles fazem isso? Como são todos RNA, todos eles são formados por nucleotídeos, e, como sabemos, adenina liga-se a uracila (o equivalente a timina no RNA) e guanina liga-se a citosina. Pois os miRNA possuem sequências de nucleotídeos que se encaixam perfeitamente nas regiões do mRNA em que as proteínas envolvidas na tradução teriam que se ligar para iniciar a produção de uma nova proteína.
É claro que isso tem que ser controlado, ou esses mRNA nunca seriam traduzidos. Os próprios miRNA são produzidos a partir de genes específicos no DNA, e a transcrição deles é mediada por outros fatores, inclusive pela sua própria quantidade no citoplasma. É todo um conjunto intrincado de eventos que ora ativa alguns genes, ora os desativa, que vai regulando o comportamento das células. No caso do desenvolvimento das folhas, o trabalho de Pulido e Laufs mostra que esses dois pedaços de RNA regulam eventos desde a diferenciação das primeiras células do meristema (local de crescimento do caule, galhos e folhas da planta) até a senescência (velhice) da folha. O que isso tem a ver com as "invenções" das plantas, das quais vínhamos falando? O comportamento desses dois pedaços de RNA nos mostra como pequenas modificações no DNA podem produzir enormes diferenças nos órgãos das plantas - neste caso, na folha.
Por exemplo, sabemos que as folhas de uma planta chamada Arabidopsis (à esquerda) devem possuir tecido rico em clorofila na parte de cima (onde ela tomará sol e absorverá energia luminosa para fazer fotossíntese) e um tecido especializado em trocas gasosas na parte de baixo. Isso é o que é chamada de polaridade da folha. A polaridade da folha é definida logo no início do seu desenvolvimento, e o miRNA faz parte dos agentes reguladores dos fatores envolvidos. Uma única modificação de nucleotídeo no sítio de ligação do miRNA pode fazer com que a polaridade da folha seja invertida, ou seja, entre outras desvantagens, essa folha não será eficaz na fotossíntese, pois a maior parte de sua clorofila está escondida do sol, virada para baixo. Nesta mesma planta, Arabidopsis, o equilíbrio entre a quantidade de miRNA e a expressão de uma família de genes chamada CUC define se a folha será mais ou menos serrilhada. De modo interessante, quando os biólogos modificaram um dos genes CUC para que ele não fosse mais afetado pela presença do miRNA, as folhas que se desenvolveram ficaram totalmente deformadas.
Um outro grupo de plantas, a família Brassicaceae, nos dá o testemunho vivo da evolução ocorrendo. As plantas desta família são as únicas que possuem uma variação do miRNA, chamada de miR824, que por sua vez interfere no funcionamento de um único gene, o AGL16. O fato de só existir nesta família sugere que este miRNA surgiu dentro dela, a partir de uma duplicação do próprio gene AGL16. E esta parceria é imprescindível para o desenvolvimento das folhas nesta família: sem a ação do miR824 sobre o AGL16, as folhas desenvolvem deformações.
Enfim, os miRNA são apenas alguns de uma quantidade infinitamente maior de fatores moleculares envolvidos no desenvolvimento de folhas e de todas as demais partes das plantas. Como vimos, pequenas modificações neles podem resultar em grandes diferenças, que podem ser boas ou ruins. Certamente a maior parte desses "experimentos" da natureza deu errado no decorrer dos bilhões de anos de evolução da vida, deixando chegar até nós apenas o que funcionou, como a própria "invenção" das folhas, órgãos altamente especializados em fornecer energia à planta. Isso pode nos dar a falsa idéia de que a natureza já sabia desde o princípio onde queria chegar. Mas a verdade é que o que sobrou é apenas uma pequena parte de um todo muito maior; e um todo não apenas de fracassos, mas também de acertos que duraram bastante tempo e, pelas mais variadas circunstâncias, deixaram de existir muito antes que pudéssemos apreciá-los com nossos olhos. Resta aos estudiosos da vida, agora, imaginar o que pode ter acontecido e tentar, por meio das pistas que os seres vivos atuais e fósseis nos dão, comprovar ou refutar essas idéias.
Bibliografia
Biologia Vegetal, de Peter H. Raven, Ray F. Evert e Susan E. Eichhorn. Guanabara Koogan, 6ª edição, 2001.
Co-ordination of developmental processes by small RNAs during leaf development, de Amada Pulido e Patrick Laufs. Journal of Experimental Botany, Vol. 61, No. 5.
Érico, ficou muito bom. Gostei da forma como foi introduzido e as explicações gerais dadas no decorrer do texto. Imagens e vídeos também foram bem escolhidos.
ResponderExcluirRafaella S. Monteiro
Então, evolução é isso! uma série de evidências, um conjunto de mentes interessadas e um mundo interessante à nossa volta. parabéns por ser um guia nessa viagem! e sucesso ao blog!Priscila Fernandes
ResponderExcluirNuss Érico que abordagem! Como sempre me surpreendo com seus textos e colocações. O modo como as "invenções" foram exemplificadas com o artigo foram ótimas, vistas desses modo, as plantas até que são legais! rs ^^
ResponderExcluir=*
Érico, adorei como você abordou a evolução das plantas. Ficou bem interessante além de uma ótima compreensão do texto!!!!
ResponderExcluirOw Érico!
ResponderExcluirValeu por ter disponibilizado os vídeos e parabéns pelos excelentes textos!
Me tiraram algumas dúvidaS!