sábado, 3 de abril de 2010

O cinema pode ser uma ferramenta muito útil no ensino de ciências. O presente artigo Levanta alguns aspectos a serem analisados nas obras de FC científica, bem como caracteriza alguns elementos e obras de grande divulgação.

A Ficção Científica (FC) foi desenvolvida no século XIX. Esse tipo de ficção constitui uma linguagem que lida principalmente com o impacto da ciência, tanto verdadeira como imaginada, sobre a sociedade ou os indivíduos. O termo é usado, de forma mais geral para definir qualquer fantasia literária que inclua o fator ciência como componente essencial, e num sentido ainda mais geral, para referenciar qualquer tipo de fantasia literária. É muito comum considerar a qualidade didática das obras de FC, mas esse recurso pode ser mais bem aproveitado do que simplesmente com correções de conceitos, uma vez que esse tipo de procedimento muitas das vezes ignora as condições de produção do discurso e da obra ficcional (o que também não quer dizer que essa não seja uma forma de utilizar o recurso).

O potencial didático das obras de ficção científica muitas vezes é julgado à medida que essa obra apresente maior ou menor precisão em relação aos conteúdos abordados nas aulas fazendo com que filmes fantasiosos ou cientificamente menos objetivos sejam didaticamente menos relevantes. Apesar de uma obra de ficção científica muitas vezes apresentar uma grande diversidade de abordagens durante sua narração, alguns elementos podem ser categorizados no que se refere à relação da construção literária com o conhecimento científico e com as suas correspondentes possibilidades de análise em contexto didático.

Para a categorização serão adaptados traços distintivos da semântica greimasiana (Greimas, 1976), que considera possível mapear o aspecto semântico de uma palavra ou, mais precisamente, um item lexical ou lexema a partir de componentes fundamentais, que seriam unidades mínimas de significado (semas), mais ou menos como classificar uma planta, onde cada uma possui alguns traços que as distinguem dos demais seres vivos (lexema) e outros traços (tipo de folhas, tipo de raiz, caule, etc.) que as distingue umas das outras e determina se são briófitas, pteridófitas, angiospermas ou gimnospermas.

Passemos então a definir um conjunto de traços distintivos independentes que empregaremos como base na construção de nossas categorias de elementos contra factuais:

1 - científico
: Elemento contra factual que é (ou não) construído por associação ao discurso científico. Uma arma laser, por exemplo, é geralmente [+científico] e um gnomo, em geral, [-científico]. A classificação, no entanto, depende da análise específica da obra, o que valerá também para os demais traços distintivos. É válido lembrar aqui que os elementos [-científicos] são potencialmente importantes nas possibilidades didáticas de uma obra.

2 - sobrenatural: Elemento contra factual que tenha (ou não), implícito em sua construção, origens inexplicáveis de acordo com pensamento lógico causal típico da ciência, tais como a magia, a mitologia e a religião. Independentemente da origem, tal aspecto introduz complicadores na análise a partir do repertório científico.

3 - real: Atribuição (ou não), ao elemento contra factual, de um caráter de realidade presente, de existência real e constatável no mundo empírico do autor e de seu “leitor implícito”, entendido aqui como define Todorov (2004). É bom observar que a realidade em si do elemento, no mundo real fora do texto da obra, é irrelevante: o discurso da obra é que assume a realidade desse fato em pacto implícito com o leitor.

4 - extraordinário: Elemento contra factual construído e considerado (ou não) como extraordinário em relação à percepção do leitor implícito. Animais falantes são extraordinários, mas barulhos no vácuo do espaço não o são quando o discurso da obra os assume como algo comum, esperado pelo espectador.

5 - inusitado: Elemento contra factual construído e considerado (ou não) como extraordinário na percepção dos personagens. Observemos que algo não extraordinário (um sapato, por exemplo) para o leitor implícito pode ser desconhecido pelos personagens.

6 - possível: Elemento contra factual assumido (ou não), pelo discurso da obra, como possível, de acordo com o conhecimento científico presente. Deve considerar o contexto da criação literária, ou seja, a verificação de se o discurso pressupõe que o elemento seja possível de acordo com a ciência.

7 - explicado: Elementos contra factuais para os quais a narrativa constrói (ou não) um contexto explicativo por meio de uma rede de relações ou formando um encadeamento lógico a partir de premissas assumidas como científicas.

8 - conceitual: Elementos contra factuais construídos (ou não) a partir de conceitos científicos, remetendo a concepções bem delimitadas e assumidas como de conhecimento do leitor implícito.

9 - conexo: Elementos contra factuais apresentados (ou não) em uma continuidade lógica construída com o mundo ficcional. Há filmes, por exemplo, em que frascos com substâncias coloridas fumegantes servem como mera ambientação, sem continuidade causal com outros constituintes da trama. Essa ausência de conexão será indicada como [-conexo]. Também marcamos como [-conexo] elementos apresentados como inexplicáveis em ruptura com relações causais imagináveis no contexto da obra (PIASI e PIETROCOLA, 2009).

A partir da associação dos elementos contra factuais citados acima e da semântica greimasiana, Piasi e Pietrocola (2009), enumeraram mais alguns elementos distintivos que ao ver filmes de ficção científica, facilmente serão observados. Aqui esses elementos serão associados a filmes de FC amplamente difundidos. Os elementos em questão são:

Emulativos: [+científico] [+real] [+possível] [+conexo] [-sobrenatural] [-inusitado]. Consideramos emulativos elementos que reproduzem de forma mais ou menos fiel o que é considerado como existente no mundo real, eles são, em geral, o assunto central da história. Esses elementos, possuem um grande problema que a associação com a realidade proporciona, fazendo com que o leitor muitas vezes não saiba o que é um conhecimento científico aceito e o que é ficcional ou por vezes aceitar como verdade científica um ponto que muitas vezes está impregnado na crença do consultor científico da obra. Por exemplo: Em Gattaca (Columbia Pictures Corporation / Jersey Films, 1997), o tipo de programa a qual os pais de Vincent (personagem central da trama) se submetem obviamente passa longe do que a Bioética permitiria. Também o mesmo personagem de longe teria as mesmas habilidades de uma pessoa geneticamente melhorada, apesar de algumas características abordadas já se mostrarem possíveis nos dias atuais.

Extrapolativos: [+científico] [+extraordinário] [+possível] [+conexo] [-sobrenatural] [-real] Para Allen (1976) são extrapolativas as histórias “que tomam o conhecimento corrente de uma das ciências e projetam logicamente quais podem ser os próximos passos nessa ciência”. Do ponto de vista didático, os elementos extrapolativos [+explicado] fornecem material rico de discussão a respeito de conceitos, leis e fenômenos, porque permitem a análise das várias relações estabelecidas pela narrativa. Por exemplo: no filme O Sexto dia (Roger Spottiswoode, 2000), apesar da clonagem ser um tema polêmico e de vários cientistas garantirem que já clonaram seres humanos é impossível que a humanidade presencie uma clonagem tão rápida, fácil e descarada como no filme em questão, afinal as pessoas não são tão simplesmente substituíveis como no filme e um clone precisa ser gerado, não nasceria com as mesmas formas e idade que o ser clonado como demonstra no filme, apesar de muitas pessoas acreditarem que no futuro tal experiência será possível.

Especulativos: [+científico] [+extraordinário] [+explicado] [+conexo] [-sobrenatural] [-real] [-possível]. Allen (1976) chama de especulativas histórias que imaginam um futuro mais remoto que as extrapolativas, mas que, apesar da inerente dificuldade desse processo, retratam ciências “semelhantes às ciências que conhecemos agora e nelas baseadas”. Nessa linha, definimos como especulativos elementos que se inspiram nas incertezas, especulações ou mesmo impossibilidades teóricas do conhecimento científico corrente, mantendo, porém, uma constituição conceitual fortemente ancorada na lógica científica. Por exemplo o filme Jurassic Park (Michael Crichton, 1993) apesar de muito bem explicada a forma como os dinossauros foram reiterados a ecossistemas atuais, seria impossível que tal tecnologia os trouxesse de volta a vida da mesma forma que seria praticamente impossível, do ponto de vista ecológico que um ecossistema sobrevivesse harmonicamente como nas ilhas dos filmes, onde grandes predadores dividem a mesma cadeia alimentar e o mesmo nicho sem que mostre quais são suas presas.

Anômalos: [+científico] [+extraordinário] [+inusitado] [-sobrenatural] [-real] [-conexo] Denominamos anômalos elementos que são construídos por ruptura explícita com o conhecido. Esse processo é geralmente empregado para explorar alternativas de realidade, seguindo uma lógica do “e se fosse possível?”. Do ponto de vista didático, acreditamos que as histórias baseadas em elementos anômalos se prestam muito bem à discussão crítica de conceitos pela maneira como nos colocam em uma situação distinta da convencional, permitindo a exploração de aspectos que uma análise mais linear não seria capaz de captar. Por exemplo no filme O homem aranha (Marvel, 2002). E se fosse possível que, quando um animal nos picasse, ao invés de sofrermos com a ação das toxinas presentes no seu veneno, adquiríssemos características diagnósticas do referido. Já imaginaram quantos super heróis e vilões teríamos rodando por aí? Principalmente os brasileiros com toda biodiversidade que temos no nosso território.

Associativos: [+científico] [+extraordinário] [+conceitual] [+conexo] [-sobrenatural] [-real] [-explicado] Um processo de construção contrafactual é a associação semântica de ideias conhecidas, produzindo um efeito de conjetura sobre possibilidades. O sabre de luz de Guerra nas estrelas (Lucas, 1977) é um bom exemplo. Sabemos o que é sabre, sabemos o que é luz. Sabre de luz pressupõe a junção desses dois conceitos, criando um elemento novo, rico em possibilidades, que por sua construção associa um conceito científico a um contexto em que ele não é empregado.

Apelativos: [+científico] [+extraordinário] [+conexo] [-sobrenatural] [-real] [-possível] [-explicado] [-conceitual] Em muitos casos, a história estabelece não mais que uma vaga conexão ou menção a uma possível justificativa científica dos predicados alternativos. Tal é o caso de Super-homem (Donner, 1978) e seus poderes. A justificativa científica nesse caso é muito simples: ele vem de outro planeta, o que é suficiente para conferir-lhe poderes especiais. Um aspecto didático fundamental em todos os casos é que os elementos apelativos, sendo apresentados como [+extraordinário], tornam-se focos de atenção. Esse fato em si já justifica uma análise do ponto de vista dos conceitos e leis científicas. Não são tão ricos quanto os elementos especulativos, já que não estabelecem relações com uma ciência ficcional que poderia ser analisada à luz da “ciência real”, não possuem uma consistência em sua relação com outros elementos e não encontram quaisquer limites para suas possibilidades. Assim, talvez o melhor caminho em sala de aula seja analisar a possibilidade pura e simples daquele elemento existir, sem limites claros, sem relações mais rígidas, em função das leis e dos fenômenos conhecidos pelos alunos.

Metonímicos: [+científico] [+extraordinário] [-sobrenatural] [-real] [-possível] [-explicado] [-conceitual] [-conexo]. É comum, nas obras de FC, tentar-se atribuir um ar científico a elementos da história como uma das estratégias de construção da verossimilhança. A mera menção de uma palavra com aspecto científico ou a presença em cena de um objeto com aparência de instrumento sofisticado pode cumprir uma função que poderíamos denominar como metonímica, por não se referir ao objeto em si, mas a um campo ao qual ele supostamente pertence – no caso, o tecnocientífico. Em uma atividade de sala de aula, a análise de um filme pode revelar um cuidado esmerado do autor em seguir de perto a terminologia e os usos cotidianos da ciência ou, ao contrário, uma série de termos com ar científico, mas que na verdade estão longe da precisão factual. Isso evidentemente não pode ser realizado sem um trabalho de pesquisa ou então o professor será um mero informante factual, dizendo: isso existe na ciência, aquilo não existe. Se espectrofotômetro é um aparelho que de fato existe, será que no filme ele é retratado tal como os espectrofotômetros reais? Se um multiplexador subespacial não existe, qual será a origem do termo empregado — como o autor inventou o termo e que relação ele poderia guardar com elementos provenientes da ciência e da tecnologia? Isso dá alguma pista a respeito do elemento ficcional tal como ele aparece retratado na obra?. Um exemplo onde as citações acima aparecem é o filme De volta para o futuro (Zemeckis,1985).

Inalterados: [+científico] [-sobrenatural] [-real] [-extraordinário] [-possível] [-explicado] [-conceitual] [-conexo]. Denominamos tais elementos de inalterados justamente por reiterarem a experiência cotidiana em um contexto onde, pelas leis naturais, ela não se aplicaria. São elementos que contrariam o conhecimento científico e a experiência real, mas que não são extraordinários, sendo antes ordinários fora do lugar. Uma discussão possível, junto com o exame crítico conceitual com os alunos (achar os “erros”), é o questionamento das motivações que os produtores tiveram em manter determinados elementos da obra como inalterados, apesar do flagrante desacordo com fatos amplamente conhecidos. Todos nós sabemos da inexistência do gorilas em contemporaneidade com dinossauros, mas em King Kong (adaptado em 2005 por Peter Jackson) o símio luta dom dois T-Rex. Qual seria o objetivo do autor em preservar na obra tais criaturas: ressaltar a força do gorila gigante?, demonstrar que na Ilha da Caveira (ambiente onde o símio gigante vivia) existiam seres pré históricos e talvez Kong fosse um deles?. São discussões que podem ser levadas para âmbitos que a própria biologia pode ajudar a resolver em sala de aula.

Agora assistir um filme precisará transcender a imaginação, e os instintos de biólogos (que obviamente todos temos, afinal de biólogo e louco todos temos um pouco) nos fará ver a ciência e especialmente os fatores biológicos por traz de cada idéia lançada nas super produções que assistirmos. Quando o conhecimento adquirido em sala não for o suficiente uma boa dica é a pesquisa, a busca pelo conhecimento nunca será demais. Até breve.

Víctor Diego Cupertino Costa


Saiba mais, leia:

ALLEN, L. D. No mundo da ficção científica. São Paulo: Summus, 1976.

GREIMAS, A. J. Semântica estrutural. 2. ed. São Paulo: Cultrix; Edusp, 1976.

TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. 3. ed., n. 98, São Paulo: Perspectiva, 2004. Coleção Debates.

Principal obra analisada:

PIASI, L. P; PIETROCOLA, M. Ficção científica e ensino de ciências: para além do método de ‘encontrar erros em filmes’. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.3, p. 525-540, set./dez. 2009 525.

5 comentários:

  1. Ah, o cinema... e ao descobrir que temos a possibilidade de ensinar e fazer ciência a partir das fabulosas imagens em movimento, nos damos conta, mais uma vez, que essa profissão de ser professor é um cenário de exercício da criatividade.

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  2. Gostei muito da análise desses traços nas obras de ficção científica. Acho que, do ponto de vista didático, ela nos permite uma nova perspectiva ao analisarmos os pontos pertinentes dos filmes à sala de aula, facilitando até mesmo a organização metodológica.

    Enquanto lia, eu tinha em mente duas obras, Frankenstein (Mary Shelley) e 1984 (George Orwell). Apesar de já ter lido algumas análises semânticas de Frankenstein que me levaram a compará-las com as definições deste texto, nunca li a obra original e nem assisti a nenhum dos filmes; entretanto, a data de sua publicação (1818) bate com o que foi dito neste texto, que o estilo literário FC se desenvolveu durante o século XIX (me pergunto agora se realmente não houve nada marcante, antes).

    Mas li e assisti a 1984 e, se transferíssemos o filme para a época do livro (1948), cheguei à conclusão de que ele seria classificado como "Emulativo", assim como Gattaca. Caso não o transferíssemos para 1948 (o filme foi feito em 1984, mesmo) ficaria muito complicado determinar que traços ele possui. Provavelmente teria algo de [+anômalo] e [+inalterado] por ser uma espécie de realidade paralela, ainda que real, possível e conexa, nos termos do texto.

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  3. Realmente imprecionante1 Eu adoro cinema, mas nunca havia parado para pensar que filmes representavam tantas coisas além de ficção. Também me lembrei de alguns filmes que achei interessantes, o primeiro Avatar(2009) é uma computação gráfica que simula a invasão humana de um planeta chamado Pandora, acho que por todos os elementos do filme ele se encaixa no primeiro item, por é possível que exista vida em outros planetas, com suas próprias caracteristicas e aquisições, no entanto, ao tratar do planeta como um organismo vivo semelhante a um deus, nos deparamos com algo discutivel, pois, na cultura humana a devoção a seres superiores é um fato, assim como a crença de que esse ser é vivo e presente em suas vidas. desculpem a viajem, mas fico pensando em como abordar essas coisas...
    Victor, muito legal, parabéns1

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  4. Victor gostei muito do texto, a aprendizagem por elementos visuais, junto a discussões, poderia ser comparado como "um prato de entrada". Enquanto a busca aprofundada e pesquisas posteriores, seria o "prato principal" todo mundo anseia.

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  5. Victor gostei muito do texto. É engraçado que lendo o comentário do Érico e por incrível que pareça li na Folha de São Paulo de domingo estava falando sobre isso mesmo, sobre a influência do filme e leitura na escola como fazer uma nova abordagem utilizando eles. E o autor também citou Frankenstein como um filme interessante para os alunos assistirem, além de outros clássicos.
    Dias atrás trabalhamos dentro de sala com o filme GATTACA, achei que foi muito bem aceito pelos alunos e bem gostoso de se trabalhar com ele.

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